in "O Público" de 23 de Abril de 2007
O secretário-geral do Movimento Escutista Mundial, Eduardo Missoni, diz que Disney ajudou o escutismo, mas deu dele uma imagem do tipo Rambo
Nascido em 1954, o italiano Eduardo Missoni esteve por acaso três anos na Nicarágua sandinista, como médico, a participar na revolução. Dirigiu, no México, programas de saúde feminina da UNICEF. Durante 16 anos, chefiou a cooperação italiana com a América Latina e África. Em resultado de toda essa experiência, escreveu o livro Misa Campesina (missa camponesa), no qual conta histórias dessa "felicidade que veio sempre do contacto real com as pessoas".No dia em que os escuteiros festejam São Jorge, o seu patrono, no ano em que o escutismo festeja o centenário da fundação por Baden Powell, Missoni conta ao P2 as suas aventuras.

PÚBLICO - Zangou-se com o G-8 por causa do preço dos medicamentos que as multinacionais fazem ao Terceiro Mundo?
EDUARDO MISSONI - Na presidência italiana do G-8 fui nomeado presidente do grupo de saúde pública. Trabalhámos temas como o acesso aos medicamentos e aos serviços básicos, a fuga de cérebros para os países desenvolvidos, a propriedade intelectual dos medicamentos.Os ministros das Finanças disseram-nos que solução tínhamos que encontrar. Normalmente, os técnicos estudam a situação e as alternativas. Depois, os líderes fazem a declaração política. Considerei que não era apropriada a imposição da decisão política antes do trabalho [técnico]. Retirei-me do cargo. Participei no Fórum Social de Génova, para dar informações sobre a saúde no Terceiro Mundo.
Falta vontade política dos grandes países para resolver questões como a sida?
Sim. As declarações são positivasm mas, no momento da verdade, os fundos são limitados, as normas do jogo não são claras. Há países desenvolvidos que subtraem cérebros aos países de África: há mais médicos do Zimbabwe fora do país do que dentro. E foram formados no Zimbabwe. Mas podia dar outros exemplos. Cada país que forma uma boa classe médica perde esse investimento em favor dos países ricos. É o mesmo com a economia, em que [o comércio] favorece os países ricos, criando um processo de empobrecimento dos que já são pobres. As diferenças no mundo crescem.
Tendo em conta a sua experiência, que áreas deveriam merecer mais atenção? Sida, tuberculose, outro tipo de doenças?
O mais importante é uma visão integral do acesso à saúde. As doenças são consequência de um sistema. [Devemos ter] uma aproximação integral ao problema. Se enfrentamos o problema da sida sem considerar a saúde da mulher, estamos a fragmentar o sistema de saúde. A resposta é voltar aos princípios da declaração de Alma Ata (1978): acesso de todos aos serviços básicos e aos medicamentos, formação básica, prevenção...
Debate-se a redução do preço dos medicamentos, por exemplo, no combate à sida. É uma medida prioritária?
Seguramente, em África, temos que ter respostas no acesso e disponibilidade de medicamentos. Se isso se limitar a pequenos grupos, a situação não muda.
É possível baixar os preços?
Há falta de vontade política, no sentido de condicionar a negociação com os fortes lobbies farmacêuticos. Eles já têm muito lucro. Se tiverem uma visão de responsabilidade social, o lucro é menor. Perante accionistas que querem crescer e ganhar, ganhar, ganhar, se não houver vontade política, o mercado, sozinho, não responderá.
Quer dizer que, no combate à sida, têm mais poder as grandes farmacêuticas do que os Governos?
No Brasil, o Governo teve uma intervenção forte, para assegurar a distribuição de medicamentos, e utilizou regras da Organização Mundial de Comércio que permitem, se houver urgência, que um país utilize [os medicamentos] sem considerar o direito de propriedade. Isto varia de país para país. Numa dinâmica mais global, ainda não há vontade de resolver o caso. Só uma forte política permite que a negociação possa ser feita em favor dos pobres. Os pobres não têm força para negociar. A pressão da consciência social tem um papel a jogar. Todos temos que fazer uma reflexão sobre o estilo de vida e o modelo de sociedade que se propõe.
Sente-se um escuteiro-mirim, como as personagens de Walt Disney?
Em italiano, não são escuteiros, essa caracterização cria confusão. O uso dessas personagens similares ao escutismo promoveu o escutismo. Mas também promoveu uma caricatura do escutismo.
Uma imagem um pouco ingénua?
Sim, e de um escuteiro que é um pouco Rambo, que resolve todos os problemas. O escutismo [exercita a] relação interpessoal, o trabalho de equipa, tem uma série de valores que não são expressos nessa banda desenhada.
Não quer resolver os problemas do mundo?
Os escuteiros querem ter um papel importante na criação de um mundo melhor. Mas isso não é uma acção [em relação a] temas específicos, antes uma compreensão de valores. Num jogo, há trabalho de equipa para promover a cooperação e não a competição; inclui-se a alegria, para ver o mundo de forma optimista, e o respeito pela natureza. Quando se cresce, começa-se a viver isso com abertura, experimentação de diferentes ambientes, de pesquisa espiritual, de temas relevantes para o crescimento. Para o escutismo não é importante passar pela experiência escuteira. Importante é ser escuteiro para toda a vida nos valores, na visão do mundo, no compromisso pessoal, social e político. É um movimento para a formação de cidadãos responsáveis.
O seu optimismo vem de ser escuteiro?
Sim. Em todas as situações, o escuteiro aprende a identificar elementos positivos de acção e trabalhar sobre isso. O fundador dizia que, em cada criança, há pelo menos cinco por cento de bondade e o dirigente deve descobri-la. Não há uma única criança que não possa sair da situação em que se encontra por razões sociais, económicas ou pela sua história familiar.Hoje, a minha preocupação principal é que os jovens são cada vez mais vistos como consumidores e não como cidadãos. Para tudo há uma proposta no mercado, muito diferente do espírito escuteiro: um estilo de vida atento aos recursos, sensível aos problemas do meio ambiente, atento à cooperação e a uma economia de serviço.
Por vezes parece que os escuteiros se preocupam com a destruição da árvore, mas não com os grandes problemas do ambiente.
Não. Os escuteiros também participam nos debates sobre o aquecimento global, em países africanos trabalham contra a desertificação... É fundamental a vida com a natureza para a compreender e amar.
Falta-nos a relação com a terra?
Seguramente. Todas as sociedades têm que perceber que consequências tem, sobre a Terra, o consumo quotidiano. É necessário um desenvolvimento sustentado, respeitando as gerações que virão.
Diz que o escuteiro deve saber trabalhar no duro. Foi isso que o levou à Nicarágua, trabalhar com os sandinistas?
Foi isso que me levou a trabalhar, como médico, em países pobres. A Nicarágua foi casual. A ideia inicial era trabalhar em África. Mas a organização que encontrei - Movimento de Leigos para a América Latina - propôs-me ir para a Colômbia.Quando triunfou a revolução sandinista na Nicarágua, e quatro padres integraram o Governo do país, em vez da Colômbia, [propuseram-me] a Nicarágua. Não foi uma opção política. Depois, vivi mais de perto a problemática dessa população e vinculei-me muito ao processo, que nesses anos foi de muita abertura. Cheguei a lugares onde jamais tinha estado um médico - e era assim com escolas e muitos serviços.
Faz um balanço positivo?
Sim. Naturalmente, a situação internacional influenciou o trajecto, também em termos económicos: a relação Norte-Sul nas Américas determinou que, em alguns casos, o processo se tenha desviado. Mas o meu balanço desses anos é positivo.
Nunca perdeu o optimismo?
Não é preciso perder o optimismo. Tem que se ser realista e batalhar para passar valores. Considero-me uma pessoa privilegiada pela vida: pude estudar, fazer escutismo, desporto, seguir os meus sonhos. Isso dá também responsabilidade.
Mas nunca se sentiu abatido?
Muitas vezes. Mas recordo o que um amigo me disse, no Peru, numa zona de pobreza extrema. Eu dizia: "Queria ser milionário para resolver todos estes problemas." Ele respondeu: "Mas nós somos milionários, temos a responsabilidade de gerir todo o dinheiro que vem do Governo italiano. E o problema é se conseguimos canalizar os recursos para onde são necessários."
Há muita burocracia no apoio ao desenvolvimento?
É o maior inimigo. Há dinheiro, mas podia-se trabalhar com mais velocidade, fazer coisas melhores. Por vezes há pressão política, para ir numa direcção... Mas isso não quer dizer que não se trabalhe a promover o desenvolvimento nas estruturas públicas. Creio fortemente nas instituições. Precisamos é de formar pessoas que vejam na instituição uma forma de apoiar os demais.
Não se sente como um militar com farda de escuteiro?
Não. O escutismo é um movimento de paz. O fundador era general, mas teve a capacidade de mudar, transformando-se num homem de paz, capaz de integrar as pessoas que tinha combatido. O uniforme tem uma função de unidade e redução das diferenças. Se houver apenas ritual sem compreender a pedagogia, perde-se a compreensão do escutismo. Não, a farda não implica militarismo.
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